Marcelo Brice
doutor em Sociologia e professor da UFT

Temos ciência, desde muito e de modo notável em “Ilusões Perdidas”, como o jornalismo é um mercado. O livro é um clássico da literatura de Balzac. Conta de como um jovem aspirante a poeta se tornou um fenômeno do banditismo jornalístico, mas foi tragado pela mídia e viu seus sonhos ruírem enquanto a indústria dos meios se fazia ao gosto do freguês.

Saber disso faz toda a diferença na sociedade atual. Conhecer essa narrativa ajuda muito a trafegar pelas barbas do profeta, se é que existe uma coisa e outra. Infelizmente esse livro não é muito lido.

Recentemente vimos, por exemplo, no Tocantins o nível de comprometimento do discurso jornalístico livre com o excesso de brandura dos portais locais no apaziguamento do afastamento do governador, ao escamotear as notícias e a denominar como “suposta operação” as buscas e apreensões no apartamento do governador das plásticas, no rosto, como também nas contas. Para todo o espectro político, se não falar o querem ou pode, não vão publicar.

Vamos para outra seara sobre a mesma lamúria: as pautas, a edição e o discurso televisivo.

As redes sociais (a antessala da angústia, em vários sentidos) é um novo espaço de debate, mas o poder de alcance e de permanência da TV aberta é de outro patamar e construção de entendimento.

A televisão aberta é o principal meio de chegar às pessoas qualquer interpretação acerca dos acontecimentos sociais. Por isso, sem dúvida, tão editado e facilitado. Como poderemos construir um debate relevante e mesmo profundo sobre a vida social, se as questões que podem suscitar o debate são impedidas e mal selecionadas ao distribuir os elementos de entendimento pela TV?

Dito isso, ou o debate é melhor oferecido, estimulado e apresentado ou seremos pobres espiritualmente e teremos portais com as opiniões pagas pelos banners do governo do Estado por muito mais tempo.

Só com um discurso livre da pretensão de mistificação, de facilitação, de empobrecimento do outro poderemos esperar por uma compreensão social e, por consequência, individual, nesse caso, maior.

Uma historinha para a exemplificação do problema.  

Gosto mais de escrever ultimamente, porque há maior domínio no que se diz e no que se quer dizer. Entrevistas funcionam mais ao vivo e para rádios. Nisso o Lula tá certo.

Para ter um doutor (não importa se ele tem algo interessante a dizer) ratificando a ideia do mercado de opiniões que o jornalismo se tornou e garantir certa “credibilidade”, os veículos costumam convidar professores da universidade para “tapar esse buraco”.

Me convidam sempre. “Ah, ele tem algo a dizer”, pensam alguns. Que nada! No geral (e aqui existem valiosas exceções – o que é uma boa regra), você serve se disser não sobre o que querem, mas do jeito que querem. Aceito e “só falo quando tenho certeza” (para lembrar aquela boa personagem de humor). Acontece muito de passar para colegas mais aptos (eles que sofram!).

Essa semana me convidaram para uma participação numa “série” na TV Anhanguera/Globo sobre leitura, o Dia Nacional do Livro, e a sua importância na vida das pessoas e da sociedade. É um tema que eu tenho algo a dizer. O contato me pediu um vídeo de dois minutos e eu já soltei: “pra vocês editarem e veicularem até 30 segundos, não é?”. Talvez sem perceber a ironia, o contato confirmou.

Pensando nisso, coloquei minha melhor camisa, gravei um vídeo menor, mais sucinto, para caber toda a ideia. Então eu disse, sem ao menos ser creditado, que: “a leitura é um ato de percepção da realidade, como dizia Paulo Freire, uma leitura de mundo. A leitura de livro é uma realização específica desse entendimento, já que o livro é elaborado e formalizado para isso. Que ser estudado não faz as pessoas individualmente melhores, já que conhecemos muita gente assim totalmente desprezível. Porém a leitura é um direito social e certamente melhora a sociedade, por ampliar a percepção da vida social.”

Cortaram a minha fala de um modo para confirmar o que queriam ao ponto de ficar uma fala toda picotada. E excluíram exatamente a parte que não exaltava o sentido curricular, glamoroso e sem razão de fundo com a leitura.

Nisso, a parte que pontuava criticamente o discurso liberal e meritocrático ficou de fora, hipervalorizando os indivíduos numa temática coletiva e esvaziando o juízo social do livro e da leitura.

Nesse sentido, também não tem culpa a colega que foi mostrada como ‘case de sucesso’ para, indiretamente, servir de exemplo a presidiários leitores (inclusive o projeto de remissão de pena pela leitura é bom, sim, mas só).

Os senões das coisas, onde se esconde o relevante, se perdeu. E, quer seja, para se tornar palatável, não ajudaram em nada o entendimento, só empobreceram e desprezaram a compreensão do outro.

Assim descaminha a humanidade e perpetua-se o cabresto e o antolho/viseira que reafirmam a oligarquia, agora também guiado o olhar, mas de outro jeitinho.