A desembargadora Mariangela Meyer, do Tribunal de Justiça Mineiro, deu improvimento ao recurso de uma instituição de saúde que pedia autorização para transfusão de sangue em um paciente seguidor da religião Testemunha de Jeová. A julgadora reconheceu a inviabilidade de se impor ao paciente, por meio de decisão liminar, a submissão a um tratamento médico que viola sua consciência, crença e livre manifestação de vontade. 

O paciente, no caso, tem 66 anos de idade, é pastor e segue a religião referida desde o ano 2000. Ele foi internado com quadro de hemorragia digestiva grave e sofre de diverticulite há três anos. A instituição alega que o direito à vida deve prevalecer sobre o direito de crença religiosa. Disse que a transfusão seria necessária para salvar o paciente, já que uma cirurgia poderia ser muito arriscada diante do seu estado clínico. 

O homem se disse lúcido, orientado e consciente no tempo e espaço. Afirma que quando deu entrada no hospital avisou a equipe médica da sua decisão livre e esclarecida de recusa à transfusão de sangue, mas que autorizou os demais procedimentos e protocolos. Ele considera “repulsiva e degradante” a transfusão sanguínea de terceiros para o seu corpo, por isso citou o uso de PBM (Pacient Blood Manegement), um programa que reúne métodos para gerenciar e preservar o sangue dos próprios pacientes. 

A defesa diz, ainda, que sendo o procedimento realizado por meios coercitivos se tornaria ato desumano e torturante, associando-o a um estupro. A juíza disse, em sua decisão, que o próprio hospital informou que o paciente estava lúcido e que externou, junto à família, a vontade de não ser submetido a qualquer tratamento que envolva transfusão. A julgadora se valeu dos Enunciados 403 e 528, do Conselho da Justiça Federal, e em um parecer do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, além de um precedente da própria Justiça Mineira favorável ao paciente. 

Diz o Enunciado 403: “O direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no artigo 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante”.

O Enunciado 528 diz o seguinte: “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”. 

Ainda quando era procurador do Estado do Rio de Janeiro, em 2010, Barroso emitiu o seguinte parecer: “Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade”.

Diante de tudo isso, a magistrada decidiu: “Se presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de cautelas, devendo se fazer presente o consentimento válido, inequívoco, que seja produto de uma escolha livre e informada. É o que se observa no caso em tela, em que o agravado afirma e reafirma, de forma escrita e verbal, junto a seus familiares, que tem plena consciência de sua escolha e suas possíveis consequências. Por todos os motivos acima delineados, entendo pela inviabilidade de se impor ao agravado, por meio de decisão liminar, a submissão a um tratamento médico que viola sua consciência, crença e livre manifestação de vontade”. (Processo 1.0000.23.096144-3/001).