Despertei naquela madrugada de sexta feira sem animação. Esta sensação me fez companhia durante todas as aulas do turno matutino.  Após chegar em casa, corri para o banho, tive calafrios e tremedeira. Minha dona veio ao meu socorro com a pergunta previsível, “o que foi”? Disse a ela que eu estava febril e me deitei em seguida, implorando pela proteção do edredom.

A febrícula perseverara no dia seguinte. Minha dona insistia para que eu fosse numa emergência, no entanto, desconfiava que nos finais de semana o atendimento era realizado por recém-formados ou algum médico em fim de carreira que não tinha escapado do plantão.

Na segunda feira, tentei marcar uma consulta com o meu médico, sem sucesso. A opção que me restou foi uma profissional com um sobrenome pomposo, filha de médicos da capital. Ela atendia numa clínica lotada e com atendentes de carantonhas fechadas, na movimentada e apertada Avenida Z, Setor Aeroporto. Passei em frente a um Sex Shop, uma lanchonete e cheguei ao destino.

Não demorou muito e chegou minha vez. Foi um atendimento seco. Ela não aferiu minha pressão, nem verificou se eu estava febril. Aliás, fez questão de manter distância e a porta semiaberta. Depois que ela me explicou tudo aquilo que eu já sabia, solicitou o exame PCR para ver se poderia ser a Peste, além de um hemograma para verificar possível dengue.

Na quarta-feira, retornei à clínica com os resultados dos exames, que eu já sabia, implorando para a secretária um encaixe. A médica, com o seu sobrenome pedante, me recebeu com ares de “estou sendo incomodada”. Quando abriu o envelope, ela ficou carrancuda. “Quer dizer que além de você estar infectado, ainda vem pessoalmente mostrar o exame”? Justifiquei que, sendo professor da Rede Pública, tinha um procedimento para pedir licença médica e para isso eu precisava do atestado devidamente preenchido e, que não tinha ninguém que pudesse fazer isso por mim.

Parei por alguns instantes para observar e entender a reação daquela profissional da medicina. Lembrei de um noticiário visto na noite anterior, quando uma estudante de medicina de Maceió reclamava que, justamente na hora de seu repouso, uma paciente infartada dava entrada na UTI, a mesma acabou morrendo, e a estagiária não dormiu.

A médica sisuda que me atendia insistia que o exame médico deveria servir e que tudo aquilo que eu argumentava era ridículo. Disse a ela, inutilmente, que não fui eu que criei estas normas e que sem o atestado médico eu não poderia dar entrada à licença e a Secretaria de Educação descontaria uma semana de trabalho do meu minguado salário. Ela abriu a porta do seu consultório e me disse, com um tom bastante áspero, que eu esperasse na recepção. Sem ação, fui saindo com vergonha do mundo e peguei o atestado com a sua secretária, que também manteve a mesma grosseria da patroa médica.

Fui embora me sentindo um lixo humano não reciclável. Não deu tempo de dizer a ela: “passei muito bem, obrigado”, “não tive febre há 4 dias”, “a minha garganta não me incomoda mais”, “estou isolado”, “utilizo a máscara N95”, “ando com o meu álcool 70”, “não converso com  ninguém”, “a senhora foi a única tentativa”. Não foi possível dizer isso, pois ela não perguntou, fui chutado do consultório antes.

Peguei o caminho de volta cruzando com vários indivíduos sem máscaras. A imagem de uma mulher de lingerie preta e minúscula, na porta do Sex Shop, parecia sorrir exclusivamente para mim, no entanto eu não estava no clima. Procurei uma razão para ficar com bom ânimo. Lembrei que os meus leucócitos agiam bravamente em defesa do meu organismo e era possível sentir os resultados. Meus colegas da escola não sentiram minha falta e nem perguntaram pelo infectado. Se eu tivesse partido para o além, talvez alguns deles diriam: “era um ser humano incrível.” No entanto, uma aluna do Ensino Médio, que me acha incrível, me perguntou, através de uma mensagem, como este humano estava. Foi o suficiente! Ganhei o dia e mais alguns glóbulos brancos.