Antes de iniciar a narrativa da história verídica que contarei a seguir, tomo a seguinte precaução: troquei os nomes procurando assim preservar a identidade de pessoas de bem envolvidas nos fatos descritos, posto isso, vamos a eles.

Maria do Afonso Amaral, oriunda de tradicional família goiana, viu o mundo cair a seus pés quando ela tomou conhecimento do preço que pagaria por se ter envolvido com João Rafael, um jovem, filho de pais trabalhadores sem posses. Essa relação resultou numa gravidez, não desejada, de um casal de gêmeos. E a situação tornou-se mais delicada pelo fato do pai das crianças, sem nenhum grau de instrução, ser a antítese do “bom partido” que imaginava o clã familiar para a filha caçula. 

Ciente de que pagaria um preço social pela aventura amorosa, naquele mundo repleto de falsos moralismos, Maria convidou Elvira Alencar, sua melhor amiga, para um jantar. 

– Boa noite, Elvira! Assim cumprimentou Maria, que já estava à espera da amiga. Demorei?, indagou Elvira.

¬ De jeito nenhum. Acabei de chegar! - respondeu Maria. 

Transcorridos alguns minutos de conversa, Maria, em lágrimas, revelou sua angústia à Elvira.

– Simplesmente, não sei como falar desse assunto com meus pais, - disse Maria à melhor amiga dela.

– Estamos de cabeça quente. Deixe que nossos travesseiros nos apresentem o melhor caminho a ser tomado. Eu te ligo amanhã. 

Passadas 24 horas, Elvira apontou o melhor caminho à sua amiga de infância.

– Você ainda deseja  uma pós-graduação na Universidade da Califórnia?

– Claro que sim. Planejo isso há cinco anos. - respondeu Maria.

– Ótimo! A duração do curso é de três anos. Nesse tempo, você terá essas crianças. É tempo mais que suficiente para providenciarmos uma adoção para elas.

– Isso vai contra meus princípios, - ponderou Maria. Mas creio ser esse o melhor caminho.

Leia Também:
- A Coluna Prestes em Porto Nacional
- O sábio Anthony Giddens e os Dilemas da Modernidade

Passados 9 meses  de um inferno astral, Maria Afonso do Amaral deu à luz aos gêmeos, que tomariam diferentes caminhos nesse rumo do rio que é a vida de todos nós. Felipe e Flávio estavam prontos para serem adotados.

Um casal de diplomatas franceses, residentes em Genebra, adotou Felipe; já Flávio foi adotado por um casal lá de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. E passados 25 anos, os filhos de Maria trilharam a vida deles por caminhos completamente diferentes.

Felipe, imerso num ambiente de estudos, tornar-se-ia um respeitado cirurgião da Califórnia. Já Flávio, filho de pais displicentes, envolveu-se com más companhias que o levaram a conhecer o mundo do crime. Felipe e Flávio, duas vidas, dois mundos diferentes, dois caminhos diferentes. Felipe tinha liberdade; Flávio, não. O cirurgião suíço, muito respeitado, era resultado de um tipo de desenvolvimento que consolida a cidadania. O marginal, por sua vez, era vítima de um tipo de desenvolvimento, cujo contexto é de um Estado patrimonialista que beneficia os donos do poder, deixando milhares de jovens carentes do que o Estado deveria fornecer-lhes, ou seja, a educação transformadora, aquela que forma as pessoas em cidadão, e não em párias.

Para Felipe, a educação proporcionou-lhe a autotransformação que liberta o cidadão; já Flávio, a falta de educação manteve-lhe preso a um espaço social.

Intencionei, com o exemplo acima, expor uma maneira alternativa de ver o desenvolvimento como mero acumulador de riqueza.  Em seu extraordinário livro sobre o assunto, o prêmio Nobel de economia Amartya Sem apresenta um novo olhar sobre esse assunto. Para ele, o verdadeiro desenvolvimento é o indutor da liberdade. Para esse autor, quem é mais livre é: “alguém que é mais rico do que a maioria, mas tem uma doença cujo tratamento é muito caro, obviamente sofre privação em um sentido importante, muito embora nas estatísticas usuais sobre distribuição de renda essa pessoa não venha ser classificada como pobre”.

Encerro estes escritos com o que vivi nos tempos da pandemia.  Acometido pela doença, fiquei entre a vida e morte na UTI de um conhecido hospital de Goiânia. À minha direita, tinha uma paciente muito rica que era uma fumante inveterada; no leito à esquerda, encontrava-se uma funcionária pública que nunca fizera o uso de cigarro. 

Infelizmente, a fragilidade do pulmão causou a morte da rica paciente. Já a funcionária pública sobreviveu à Covid graças ao saudável pulmão que tinha. Quem, desse modo, naquela ocasião era mais livre de fato era a funcionária pública. O pulmão sadio foi a grande riqueza que a libertou do mal da Covid. Por fim, quem é mais livre:  ser prisioneiro em uma prisão do Principado de Mônaco, que mais parece um hotel cinco estrelas, ou um simpático camelô de Barcelona que vende suas guloseimas numa feira? A sabedoria do Nobel Amartya revela que o verdadeiro desenvolvimento  é aquele que não restringe a liberdade do cidadão, concedendo a esse cidadão algo que só a educação proporciona: a liberdade de ser o senhor de seu próprio destino.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, Mestre em energia pela Unicamp. Autor de oito livros relacionados aos temas de política, administração, energia e economia.

Quer ter seu artigo ou crônica publicado no Jornal do Tocantins? Envie para o e-mail: contato@jornaldotocantins.com.br.